Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Thiago de Mello - Ainda não é o fim

Mello redigiu estes versos no exílio, em Santiago (CL), em meados de 1973, mais ou menos no auge da ditadura militar no país, e com isso, deveras, nosso olhar sobre o poema em apreço inclina-se a cogitar que a violência que se expressa em algumas de suas linhas diga respeito à arbitrariedade e à prepotência, então em curso pelo regime militar pátrio.

 

Mas por trás do temor do falante pelo que possa advir, há também certo relevo na esperança de dias melhores, haja vista que “ainda não é o fim”: sonhos mantêm a chama a arder no coração, permitindo-lhe avançar “com o que sobrou”, ainda que vagarosamente, palmilhando o “chão ferido” com “pernas bambas”, para dar respostas aos insistentes reclamos da vida.

 

J.A.R. – H.C.

 

Thiago de Mello

(1926-2022)

 

Ainda não é o fim

 

Escondo o medo e avanço. Devagar.

Ainda não é o fim. É bom andar,

mesmo de pernas bambas. Entre os álamos,

no vento anoitecido, ouço de novo

(com os mesmos ouvidos que escutaram

“Mata aqui mesmo?”) um riso de menina.

Estou quase canção, não vou morrer

agora, de mim mesmo, mal livrado

de recente e total morte de fogo.

A vida me reclama: a moça nua

me chama da janela, e nunca mais

me lembrarei sequer dos olhos dela.

 

Posso seguir andando como um homem

entre rosas e pombos e cabelos

que em prazo certo me devolverão

ao sonho que me queima o coração.

 

Muito perdi, mas amo o que sobrou.

Alguma dor, pungindo cristalina,

alguma estrela, um rosto de campina.

Com o que sobrou, avanço, devagar.

Se avançar é saber, lâmina ardendo

na flor do cerebelo, porque foi

que a alegria, a alegria começando

a se abrir, de repente teve fim.

Mas que avançar no chão ferido seja

também saber o que fazer de mim.

 

Santiago,

fim de setembro de 1973.

 

Em: “Poesia comprometida com

a minha e a tua vida” (1975)

 

Opressão

(Goss Ristic: pintor sul-africano)

 

Referência:

 

MELLO, Thiago de. Ainda não é o fim. In: __________. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2006. p. 156-157.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Gastón Baquero - Breve viagem noturna

A partir de uma lenda africana (e quem sabe de quantos outros povos) – segundo a qual a alma, enquanto o homem dorme, enceta viagem à lua, ao corpo retornando pouco antes de despertar –, o poeta cubano lavra os presentes versos, envolvendo-os numa pertinente atmosfera de sonho, da qual a mãe do falante sequer suspeita, estando ao seu lado.

 

A julgar pelas palavras empregadas, o ente lírico, em vigília imerso na mundanidade terrena, sente-se “preso” neste mundo, alcançando a plena liberdade durante o descanso, quando o inconsciente dá largas a circunstâncias fantasiosas, muitas delas com a leveza própria da infância, transitando sem impasses pelo paraíso celeste.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gastón Baquero

(1914-1997)

 

Breve viaje nocturno

 

Según la leyenda africana,

el alma del durmiente va a la luna.

 

Mi madre no sabe que por la noche,

cuando ella mira mi cuerpo dormido

y sonríe feliz sintiéndome a su lado,

mi alma sale de mí, se va de viaje

guiada por elefantes blanquirrojos,

y toda la tierra queda abandonada,

y ya no pertenezco a la prisión del mundo,

pues llego hasta la luna, desciendo

en sus verdes ríos y en sus bosques de oro,

y pastoreo rebaños de tiernos elefantes,

y cabalgo los dóciles leopardos de la luna,

y me divierto en el teatro de los astros

contemplando a Júpiter danzar, reír a Hyleo.

 

Y mi madre no sabe que al otro día,

cuando toca en mi hombro y dulcemente llama,

yo no vengo del sueño: yo he regresado

pocos instantes antes, después de haber sido

el más feliz de los niños, y el viajero

que despaciosamente entra y sale del cielo,

cuando la madre llama y obedece el alma.

 

1962

 

Um sonho

(Olivier Menanteau: artista francês)

 

Breve viagem noturna

 

Segundo a lenda africana,

a alma do adormecido vai à lua.

 

Minha mãe não sabe que durante a noite,

quando ela olha para o meu corpo adormecido

e sorri feliz ao sentir-me a seu lado,

minha alma, saindo de mim, parte em viagem

guiada por elefantes alvirrubros,

e toda a terra fica deserta,

e já não pertenço à prisão do mundo,

pois logo chego à lua, desço

em seus verdes rios e bosques dourados,

pastoreio manadas de ternos elefantes,

cavalgo os dóceis leopardos lunares,

e entretenho-me no teatro dos astros

assistindo à dança de Júpiter e ao riso de Hileu. (*)

 

E, no dia seguinte, minha mãe não sabe,

quando toca meu ombro e chama-me docemente,

que não venho do sonho: voltei

alguns momentos antes, depois de ter sido

a mais feliz das crianças, e o viajante

que lentamente entra e sai do céu,

quando a mãe chama e a alma obedece.

 

1962

 

Nota:

 

(*). A rigor, dúvidas ainda me inquietam sobre a pesquisa que levei a efeito para deslindar as razões de o poeta fazer menção a “Hyleo” e o seu riso, tanto mais em face de que o aludido nome tem algo em seu radical que me faz lembrar a palavra “hilário” – adjetivo em franca associação com o substantivo “riso”. Seja como for, vão aqui os pontos por mim levantados, podendo o internauta acrescer, ratificar ou retificar, em eventuais comentários, o quanto neles se dilucida.

 

Hyleo, ou Hileu, no âmbito da mitologia grega, é um dos centauros arcádios que procuravam raptar Atalanta para violentá-la, tendo ferido gravemente Milânion, um dos pretendentes da jovem, que, em desagravo, matou-o com uma de suas flechas. Outra distinta tradição advogava que Hileu participou na luta entre os Centauros e os Lápidas, tendo sido morto não por Atalanta, mas por Teseu; ou ainda, por Héracles (Hércules), em combate nas terras de Folo. (GRIMAL, 2005, p. 228)

 

Considerando o sentido astronômico deduzível ao verso no qual se nomeia Hileu, cumpre observar que os centauros são corpos celestes menores, a meio caminho entre os asteroides e os cometas, logo justificável tal designação em face de os centauros serem criaturas metade homens metade cavalos.

 

Nada obstante, o correspondente nome em grafia latina, “Hylaeus”, diz respeito a um exoplaneta, isto é, um planeta fora do sistema solar – e não a um centauro –, identificado como “HD 117618 b”, muito embora pertencente à constelação de Centaurus (v. neste endereço).

 

Referências:

 

BAQUERO, Gastón. Breve viaje nocturno. In: WEISS, Mark (Ed.). The whole island: six decades of cuban poetry. A bilingual anthology: spanish x english. Berkeley and Los Angeles, CA: University of California Press, 2009. p. 120.

 

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2005.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Eugen Frunză - Confissão

Este canto do poeta romeno revela as intenções do ente lírico em fomentar as energias que sustentem um estado de ânimo construtivo, se não for por um motivo pessoal, muito mais por uma razão coletiva, feito um contributo ao desenvolvimento da nação – esse projeto que integra certo sentimento de pertencimento a um amplo espectro de valores culturais, sócio-políticos e históricos.

 

Considerando a menção, na derradeira estrofe, àqueles que se vendem a qualquer preço, estendendo as suas ações danosas a infrações lesas-pátrias, tudo o que se pormenoriza nas estâncias anteriores ganha novo acento, passando a representar uma bula procedimental para se viver de um modo ético, preservando íntegra a conduta.

 

J.A.R. – H.C.

 

Eugen Frunză

(1917-2002)

 

Confissão

 

Dai-me uma flor esbatida de bruma

e ela renascerá, no íntimo de mim,

com a seiva que hei de dar-lhe

e a brisa

e o adubo

de uma gota de sangue no esplendor.

 

Dai-me um pássaro doente, sem penugem –

no peito o levarei,

e, na cura que peça,

hei de tratá-lo

– como pai, como escravo –

até que possa outras aves seguir, tentando o voo.

 

Mostrai-me um solitário que suspire,

ou raio esquivo na extensão do céu –

hei de correr o mundo, polo a polo,

trazendo, em palma aberta, a própria luz.

 

Role uma lágrima,

hei de secá-la.

Dores maiores, dores menores,

hei de acalmá-las.

Hei de cantá-las, canções piedosas,

a qualquer berço,

a qualquer fronte...

 

Mas se um pulha cruzar o meu caminho,

desses que vendem o canto ou a nação,

ó, dai-me, dai-me todos, toda a dor

das dores que o abatam –

que possam reduzir-lhe à cinza o coração.

 

Renascimento Dourado

(Julia Tan SH: artista singapurense)

 

Referência:

 

FRUNZĂ, Eugen. Confissão. Tradução de Nelson Vainer. In: VAINER, Nelson (Seleção e Tradução). Antologia da poesia romena. Apreciação de Guilherme de Almeida. Prefácio de I. D. Balan. Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira, 1966. p. 191-192.

domingo, 21 de abril de 2024

Derek Walcott - Mapa do Novo Mundo: Arquipélagos

Tudo nestes versos de Walcott é alusão ao término da Guerra de Troia, enredo da Ilíada de Homero (928 a.C - ~898 a.C.), e o que, em sequência, se narra no regresso de Odisseu (ou Ulisses) a Ítaca, sua terra natal, na Odisseia: nem se descuida o poeta em sublinhar o fato de que Homero teria sido um aedo, ou melhor, um cego rapsodo que recitava suas composições ao toque de uma lira.

 

O clima do poema reflete quer o estado funesto e plangente associado à devastada urbe de Troia, quer o tempo meteorológico embaçado e chuviscante a envolver as ilhas gregas – presumivelmente as do lado leste, no mar Egeu, onde se localizam muitos dos centros portuários que deram notabilidade à histórica vocação marítima do país.

 

J.A.R. – H.C.

 

Derek Walcott

(1930-2017)

 

Map of the New World: Archipelagoes

 

At the end of this sentence, rain will begin.

At the rain’s edge, a sail.

 

Slowly the sail will lose sight of islands;

into a mist will go the belief in harbours

of an entire race.

 

The ten-years war is finished.

Helen’s hair, a grey cloud.

Troy, a white ashpit

by the drizzling sea.

 

The drizzle tightens like the strings of a harp.

A man with clouded eyes picks up the rain

and plucks the first line of the Odyssey.

 

Embarcações em perigo numa costa rochosa

(Ludolf Backhuysen: pintor germano-holandês)

 

Mapa do Novo Mundo: Arquipélagos

 

Ao final desta oração, começará a chuva.

À borda da chuva, um veleiro.

 

Lentamente o veleiro perderá as ilhas de vista;

num nevoeiro soçobrará a crença nos portos

de toda uma raça.

 

A guerra dos dez anos chegou ao fim.

Os cabelos de Helena, uma nuvem gris.

Troia, um depósito de cinzas brancas

junto ao mar chuviscante.

 

A garoa aperta como as cordas de uma harpa.

Um homem com olhos enevoados recolhe a chuva

e dedilha a primeira linha da Odisseia.

 

Referência:

 

In: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best ‎‎poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 281.