Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 23 de março de 2014

Hans Kelsen – Teoria Pura do Direito (Parte II)

Leia aqui a Parte I.
(Parte II)
II.     DIREITO E MORAL (p. 67-78)
O direito é uma ciência que, distintamente das ciências naturais, dirige-se às normas sociais, ainda que não seja a única nesse sentido. A moral também se orienta às normas sociais e o seu conhecimento como ciência configura o domínio da ética.
Kelsen julga incorreta a distinção entre moral e direito baseada em que a primeira se refere a normas internas e o segundo a normas externas, pois as normas dessas duas ordens contemplam ambas as espécies de conduta. Além disso, a lei moral também é positiva, porque suas normas derivam do costume ou das proposições de um profeta. A diferença entre moral e direito reside, de fato, no uso da coerção e da força, mesmo a física. Com efeito, na moral, as “[...] sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física” (p. 71).
Kelsen, como se sabe, recebe a influência do pensamento ético e jurídico de Kant, que se reflete em várias dimensões de sua doutrina. Por isso, o autor não admite que o direito convirja para constituir um mínimo de moral. Reportam-se a duas ordens de conduta diferentes. Não há razão para identificar o direito com a justiça e conceber a moral como um valor absoluto. Pelo contrário, quer o valor moral quer o valor jurídico são relativos, uma vez que são balizadores de normas sociais: “Do exposto resulta que o que aqui se designa como valor jurídico não é um mínimo moral neste sentido, e especialmente que o valor de paz não representa um elemento essencial ao conceito de direito” (p. 74).
A concepção relativista dos valores não significa que estes não existam ou que não exista justiça alguma. Ele não admite valores absolutos ou justiça absoluta, senão diversos sistemas morais e jurídicos que relativizam seus valores. Acrescenta ainda que o direito, como ciência, não necessita de justificações, nem absolutas nem relativas, para a sua existência. O direito encontra sua justificação em sua própria estrutura lógica: “[...] a ciência jurídica não tem de legitimar o direito, não tem por forma alguma de justificar [...] a ordem normativa que lhe compete – tão-somente – conhecer e descrever” (p. 78).
Em resumo: a distinção entre moral e direito deriva não de valores absolutos, tampouco de valores relativos, mas da ausência de coerção ante o cumprimento ou não da norma moral, enquanto que o não cumprimento da norma jurídica pode levar, paralelamente, ao uso da coerção física contra o responsável.
III.    DIREITO E CIÊNCIA (p. 79-119)
Normas e conduta são, como as imagina Kelsen, um binômio inseparável para a concepção e estruturação do direito enquanto ciência. Como já se disse, a ciência jurídica tem por objeto as normas jurídicas. Daí decorre a distinção entre a teoria estática e a teoria dinâmica do direito: “A primeira tem por objeto o direito como um sistema de normas em vigor, o direito no seu momento estático; a outra tem por objeto o processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado, o direito no seu movimento” (p. 80).
Kelsen faz distinção entre proposições e normas jurídicas. As primeiras são proposições condicionais que, em conformidade a um determinado ordenamento jurídico nacional ou internacional, devem produzir certas consequências. As normas jurídicas, por seu turno, são mandamentos, imperativos, comandos, permissões e atribuições de poder ou competência. Elas podem enunciar ou declarar algo relativo aos fatos humanos, enquanto dotados de significado jurídico. “Na medida, porém, em que as normas jurídicas são expressas em linguagem, isto é, em palavras e proposições, podem elas aparecer sob a forma de enunciados do mesmo tipo daqueles através dos quais se constatam fatos” (p. 81).
A diferença entre proposição jurídica e norma jurídica é importante porque permite a distinção entre a função do conhecimento jurídico e a função que a autoridade jurídica cumpre. Uma coisa é a ciência jurídica, outra a autoridade jurídica. A ciência jurídica descreve, a atividade jurídica prescreve: as normas jurídicas não são nem verdadeiras nem falsas, mas unicamente válidas ou inválidas, sendo aplicáveis às condutas humanas.
Com o objetivo de conferir nitidez à distinção entre a natureza e a ciência jurídica, Kelsen recorre à dicotomia entre ciência causal e ciência normativa. À primeira pertencem a ordem regular e as leis da natureza física ou cósmica; à segunda, os ordenamentos reguladores sociais, sendo o direito um deles. Há, desse modo, dois tipos de legalidades: a natural e a jurídica, que se distinguem pelo princípio de imputação ou atribuição, unicamente aplicável à interação humana, expresso pelo verbo dever, a abarcar três significados, objeto das normas jurídicas: o ordenar, o facultar e o permitir condutas humanas e suas consequências.
A causalidade ocorre, com frequência, no mundo fático, enquanto que a imputação − jurídica − nem sempre se lhe corresponde, pois não é raro que determinados fatos fiquem sem sanção, uma vez que a norma reguladora não se lhes aplica. A imputação não tem, portanto, natureza causal. Kelsen entende ainda que seja possível que o princípio da causalidade tenha se originado da norma de retribuição: “É o resultado de uma transformação do princípio da imputação, em virtude do qual, na norma da retribuição, a conduta não reta é ligada à pena e a conduta reta é ligada ao prêmio” (p. 94).
As leis naturais, formuladas pelas ciências naturais, orientam-se pelos fatos. “Os fatos das ações e omissões humanas, porém, devem orientar-se pelas normas que à ciência jurídica compete descrever. Por isso, as proposições que descrevem o direito têm de ser asserções normativas ou de dever-ser” (p. 98).
Em seguida, Kelsen introduz o problema da liberdade, a respeito do qual assinala que existe um ponto terminal da imputação (mas não um ponto terminal da causalidade), que se fundamenta na liberdade do homem em sociedade, extensível à responsabilização pelos seus atos, sendo básica para se entender as relações normativas que daí decorrem. Para o autor, a liberdade humana é resultante da necessidade de se responsabilizar uma conduta em termos morais ou jurídicos. Apenas porque o homem é livre é que se fazê-lo responsável por sua conduta, “[...] é que ele pode ser recompensado pelo seu mérito, é que se pode esperar dele que faça penitência pelos seus pecados, é que o podemos punir pelo seu crime” (p. 105).
Com isso, Kelsen quer exprimir que é a determinabilidade causal da vontade que possibilita a imputação. “Não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. Imputação e liberdade estão, de fato, essencialmente ligadas entre si” (p. 109).
O autor assinala, posteriormente, que as normas de imputação podem ser categóricas ou hipotéticas. As primeiras são as normas que, positivamente, prescrevem, autorizam ou permitem algo. As normas hipotéticas, por seu turno, estabelecem determinada conduta como devida pelos indivíduos, sob a forma condicionada (p. 113).
Ao final deste capítulo, o autor deprecia a crítica que se faz à ideia de uma ciência que descreve o direito como um sistema de normas, ao afirmar que o dever − sustentáculo da norma − carece de sentido ou é um simulacro ideológico. Kelsen objeta que, se é para retirar o significado de dever como o fundamento da norma, toda a ordem jurídica desmorona sem poder justificar o permitido ou o proibido, sem distinguir entre o que pertence a um ou a outro indivíduo. Uma coisa é a norma e outra a sua individualização ou aplicação ao caso concreto.
Quanto à ideologia, argumenta que, com frequência, pretende encobrir a realidade para fins diversos de conservá-la, defendê-la, transformá-la, atacá-la, destruí-la ou substituí-la por outra: “Tal ideologia tem a sua raiz na vontade, não no conhecimento, nasce de certos interesses, melhor, nasce de outros interesses que não o interesse pela verdade” (p. 119).
IV.   ESTÁTICA JURÍDICA (p. 121-213)
Começando pelo tema da coerção, Kelsen afirma que ela é uma propriedade da ordem jurídica: “Atos de coerção são atos a executar mesmo contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de resistência, com o emprego da força física” (p. 121).
As sanções, enquanto atos de coerção estatuídos contra uma ação ou omissão determinada pela ordem jurídica, podem ser de dois tipos: umas, como a coerções estatuídas por lei, e outras que carecem desse caráter, qual o internamento compulsório de indivíduos com enfermidades perigosas, ou em razão de sua raça, convicções políticas, credo religioso ou ainda a aniquilação compulsória da propriedade no interesse público. Kelsen observa que as sanções, no sentido específico da palavra, aparecem nas ordens jurídicas estatais sob duas formas: como pena ou como execução forçada e, em ambos os casos, consistem na realização compulsória de um mal ou na privação compulsória de um bem. Elas podem ainda ser de caráter penal, civil ou administrativo, impostas pelos órgãos respectivos. No que diz respeito às sanções do direito internacional, aparecem como represálias e guerras, a serem tratadas no capítulo VII da obra.
O autor observa que expressões como ilícito, violação do direito ou que tais, expressam a ideia de uma negação do direito. Essa tese induz ao erro por interpretar como uma contradição lógica a relação entre a norma que ordena uma conduta e a conduta fática que é oposta à ordenada, porquanto “[...] o ilícito não é um fato que esteja fora do direito e contra o direito, mas é um fato que está dentro do direito e é por este determinado, que o direito, pela sua própria natureza, se refere precisa e particularmente a ele” (p. 127).
As obrigações jurídicas decorrem da exigência de certos comportamentos às pessoas em interação na sociedade. Sua vigência depende menos de um impulso interno que da mesma norma jurídica associada ao dever: “É o indivíduo que, através da sua conduta, pode violar os deveres, isto é, provocar a sanção, e que, portanto, pode cumprir o dever, isto é, evitar a sanção” (p. 131). Já o dever jurídico revela-se pelo cumprimento de algo que pode estar permitido, ordenado ou facultado. O indivíduo cumpre com seu dever ou, caso contrário, será sancionado conforme a norma. Neste caso, fala-se de norma individualizada. O dever jurídico se encontra essencialmente vinculado à responsabilidade. Geralmente, há identidade entre o sujeito de uma obrigação e o da conduta que constitui o conteúdo da obrigação. No entanto, a ordem jurídica pode responsabilizá-lo pela conduta de outro, mesmo que a obrigação sempre tenha por objeto a conduta da pessoa obrigada.
O autor faz distinções entre responsabilidade pela culpa e responsabilidade pelo resultado. A primeira se refere a condutas ilícitas em que a ação se produz como efeito de uma previsão ou intenção deliberada para atingir o resultado, atribuindo-se-lhe, subjetivamente, uma intenção má. A segunda diz respeito à hipótese em que o evento se verifica sem qualquer intenção ou efetiva previsão, nela abrangidos os casos de negligência.
Para Kelsen, a reparação de danos morais ou materiais “[...] não é uma sanção, mas [...] dever subsidiário” (p. 139), uma obrigação, portanto, uma vez que a sanção se aplica a condutas ilícitas, violadora de um bem jurídico de hierarquia superior. A primeira e principal obrigação é não causar dano e, na medida em que se cause, deve-se repará-lo. Na hipótese de o obrigado não reparar o dano, o órgão jurídico encarregado haverá de intervir e impor − inclusive por meio de coerção, se necessária − o cumprimento dessa obrigação acessória.
Em seguida, o autor passa a analisar o conceito de direito subjetivo. Partindo de análise linguística, Kelsen conclui que palavras como “recht”, em alemão, e “droit”, em francês, possuem o mesmo significado, ou seja, são ordens de conduta humana. No entanto, distingue-se, no inglês, a palavra “right”, a referir-se a direito de um indivíduo, do vernáculo “law”, a distinguir uma ordem jurídica de um povo.
Kelsen julga que a distinção, a partir da jurisprudência romana, entre direito em face de uma pessoa (jus in personam) e direitos sobre uma coisa (jus in rem), induz ao erro, pois “[...] o direito sobre uma coisa é um direito em face de pessoas” (p. 145). Ele assegura que o direito subjetivo por excelência, sobre o qual se fundamenta a distinção anterior, é a propriedade, daí porque essa distinção tem um pronunciado sentido ideológico.
O Direito subjetivo se manifesta por um interesse juridicamente protegido, ou seja, como o reflexo do dever jurídico de outrem, de respeito ao interesse do titular desse direito, que não há de ser violado. O conceito de direito subjetivo também é extensível ao poder jurídico que permite a alguém exercer uma ação frente a um obrigado, que desconhece ou deixa de cumprir uma obrigação junto àquele: “O exercício deste pode jurídico é exercício de um direito no sentido próprio da palavra” (p. 151). “Em resumo, pode dizer-se: o direito subjetivo de um indivíduo ou é um simples direito reflexo [...]; ou um direito privado subjetivo em sentido técnico [...]” (p. 162).
Passando a enfrentar o tema da capacidade de exercício, Kelsen argumenta que a ordem jurídica pode ser compreendida como atribuição de um poder ou competência, ou melhor, a autorização de condutas específicas de um indivíduo, capazes de produzir efeitos jurídicos. Mas nem toda atribuição de poder implica capacidade, ou seja, o cumprimento de todos os pressupostos para o exercício de um direito. A competência ou jurisdição está especialmente associada aos órgãos judiciais e administrativos.
A ordem jurídica regula a defesa de direitos, a própria produção das normas, a aplicação de sanções etc., tarefas essas que devem ser levadas a cabo pelos órgãos jurisdicionais ou administrativos a partir da competência que lhes seja atribuída. Infere-se, por conseguinte, que são diferentes a capacidade jurídica, ou atribuição de agir conforme as normas, da competência ou jurisdição em seu âmbito de validade espácio-temporal, associada, com mais propriedade, aos órgãos jurídicos.
Kelsen vê diferenças entre a jurisdição ou competência para aplicação da norma e o órgão jurídico: “Um indivíduo é órgão de uma comunidade na medida em que exerce uma função que pode ser atribuída à comunidade, uma função da qual por isso se diz que é exercida pela comunidade, pensada como pessoa, através do indivíduo que funciona como seu órgão” (itálico do autor) (p. 167-168). Trata-se de uma ficção porque, de fato, a função é exercida não pelo órgão, mas por uma pessoa autorizada, como corolário do processo de divisão do trabalho. A capacidade, a competência e o órgão são definidos pela norma jurídica e, ainda que se vinculem, são categorias diferentes, cada uma com seus atributos específicos.
Kelsen fala ainda daqueles indivíduos que, sem capacidade de agir, ainda assim possuem direitos, tal como na hipótese de menores de idades e doentes mentais, que necessitam de um representante, o qual atuará no interesse daqueles. Além disso, há a representação por convenção dos indivíduos que detenham capacidade de fato – o caso dos mandatários –, não obrigatória, contudo, mas potestativa.
O autor considera a relação jurídica, à luz da teoria tradicional, como sempre ocorrente entre pessoas, mesmo entre pessoas físicas ou jurídicas e a pessoa do Estado: “As relações que aqui são tomadas em consideração são relações entre normas jurídicas ou relações entre fatos determinados pelas normas jurídicas. Para um conhecimento dirigido ao direito como um sistema de normas não há quaisquer outras relações jurídicas” (p. 187-188).
Com efeito, o sujeito jurídico é concebido como detentor de uma pretensão ou titularidade jurídica ou de um dever jurídico. O sujeito de direitos e obrigações passa, então, a ser identificado com a pessoa física. “Neste sentido, a chamada pessoa física é uma pessoa jurídica” (p. 194). Analogamente à pessoa física, existe a pessoa jurídica ou corporação, também sujeito de direitos e deveres, a surgir de um ato jurídico entre duas ou mais pessoas, para alcançar “[...] certos fins econômicos, políticos, religiosos, humanitários ou outros” (p. 196), dentro do domínio de validade de uma ordem jurídica estatal. Seus membros e órgãos expressam a figurativa vontade das corporações, sob as regras de seu estatuto.
Reconhecendo que a pessoa jurídica e a pessoa física são construções da ciência do direito, Kelsen afirma que o direito cria deveres e direitos, os quais têm por conteúdo a conduta humana, mas não cria pessoas. “Assim como não é lícito reconhecer à ciência jurídica uma função própria do direito, assim também se não pode reconhecer ao direito uma função própria da ciência jurídica” (p. 212).
Em decorrência do exposto anteriormente, Kelsen informa que, com a teoria pura do direito, afasta-se o dualismo do direito subjetivo frente ao direito objetivo, como herança do direito romano ou mesmo daquela “[...] concepção forense ou advocacial que apenas considera o direito do ponto de vista dos interesses das partes” (p. 213).
(Fim da Parte II)
Leia aqui a Parte III.

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